La Montagne

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Fechados contra o Mundo e seu Rei, Espírito contra Matéria!

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Pré-História do Catarismo (parte 2)

ARTE II - MARCIONITAS, MANIQUEUS, PAULICIANOS, BOGOMILOS E PATARENII, A CADEIA DE CONTINUIDADE GNÓSTICA

PELA ERRADICAÇÃO DO YAHVISMO
A região conhecida como Pontus, no nordeste da atual Turquia, foi lar para diversos povos, kassitas, assírios, hititas, persas e citas, antes de ser colonizada pelos gregos; ali se registra a última parada de Jasão em sua busca pelo velocino de ouro, e ali, no século III, grupos gnósticos portavam ostensivamente o signo do Vril, o Raio Divino, sobre o qual falaremos em outro artigo separado. Tal símbolo foi primeiro encontrado gravado nas armas de Sargão II, rei assírio discípulo de Ishtar que combateu e destruiu as casas de Israel, e daí o signo foi propagado em silêncio para Pontus, Ucrânia e Alemanha ao longo dos séculos.
No ano 144, um romano chamado Marcião, natural da capital pôntica Sinope, foi excomungado da Igreja oficial de Roma por conta de sua pregação, que ameaçava “romper a unidade da Igreja”; Marcião rejeitava o ‘Yahvismo’ dentro da doutrina cristã, a continuidade de um pensamento político, moral, cultural e espiritual judaico no seio da doutrina universal do Pai Celeste; assim sendo, corretamente rejeitou o Jehova do antigo testamento como sendo uma essência, hipóstase ou princípio do mal, completamente incompatível com o Deus pregado por Paulo. Assim, ele separava o Deus do antigo testamento, que olhava com uma visão malteísta (malo=mal, theos=deus, uma visão da divindade como maléfica na sua essência), o criador do mundo e da matéria corruptível, e o Deus do bem, do qual Paulo fala no novo testamento, criador dos Espíritos e de todo o incorruptível.
Cristo, uma entidade espiritual que não era a mesma entidade que Jesus (pelo fato do Espírito Puro, hipostático, não poder ser consubstancial à carne corruptível, à criação material de Jehova que é apenas um campo de sofrimento afastado do Pai), veio ensinar a Verdade aos homens, para que pudessem escapar das garras do deus da Matéria, o Rex Mundi. Vendo que a igreja estava em todos os lugares contaminada por falsas doutrinas judaicas ou judaizantes, ele se dispôs a reformar o Cristianismo e criou o primeiro Cisma.
O marcionismo foi duramente atacado, especialmente por um teólogo ortodoxo de Cartago muito prestigiado por sua produção acadêmica, chamado Tertuliano; ainda assim, sobreviveu como doutrina até o final do império romano, até o século quinto, e dali refluiu para o leste, para a região pôntica, a Pérsia e a Ásia central, na figura da doutrina Maniqueísta – não antes sem deixar profundas impressões no Império Romano, influenciando o futuro Paulicianismo (uma doutrina essencialmente igual ao marcionismo), e suas sementes que florescerão dentro em breve na Bulgária e na França. Mas voltemos para Mani, com mais detalhes.
Na realidade, o mundo que conheceu o cristianismo primitivo não presenciava ainda a força plena das religiões organizadas, resultando no florescimento de literalmente dezenas de seitas divergentes dentro de cada religião. Assim, existiam diversas seitas e religiões baseadas na Gnosis dualista e malteísta, anti-material, que influenciou a formação do Catarismo tardio, entre diversos povos europeus, asiáticos e mesmo semitas.

A DOUTRINA POLI-RELIGIOSA DE MANI

Mani nasceu de uma mãe parta e de um pai mandeísta (uma seita judaico-cristã do sul do Iraque), e aos 24 anos rompeu com a religião do pai para formar a sua própria. Vivendo no mundo fechado das seitas religiosas secretas durante um período de perseguição dos não-zoroastristas por parte da realeza persa, Mani absorveu diversas fontes gnósticas e esotéricas do cristianismo que influenciaram suas idéias. Hoje em dia, “maniqueísta” é um termo que designa qualquer tipo de dualista, o que nem sempre é correto. Para entender as idéias de Mani, é necessário entrar no terreno da Teologia teórica e diferenciar três tipos de dualismo cosmogenético:
1)      DUALISMO RADICAL – Ou dualismo de raíz, onde existem duas forças de igual força e antiguidade, sempiternas, preexistentes e de origem independente uma da outra. O Maniqueísmo assume a existência desde o princípio de duas forças, luz e trevas, que constituíam reinos distintos. Neste contexto, a complexa cosmogênese do mito Maniqueísta, envolvendo muitas forças e personagens, começa quando o reino das trevas invade e captura um terreno do reino de luz, porque suas criaturas são sedentas de luz e querem absorver a luz dos Espíritos; a criação material em suas fases sucessivas é deliberadamente executada pelas forças da Luz visando extrair a essência luminosa dos seres aprisionados e separá-la da matéria, que faz parte das Trevas. Assim surge o Universo como subproduto do conflito entre os dois reinos sempiternos, como tentativas sucessivas de manipulação, de ataque e contra-ataque, entre os dois lados.
Nesta visão, o mundo material é Maya, Ilusão, uma armadilha ou veneno trazido pelas forças das trevas para prender as partículas de Luz, para manter as consciências espirituais “no escuro”, ignorantes, ébrias de sua própria situação e condição.
2)      DUALISMO MITIGADO – Quando um dos princípios é, de alguma forma, inferior ao outro. O cânon de Nag Hammadi, assim como o texto clássico do Catarismo, “O Livro dos Dois Princípios”, se apóiam na idéia de que Yaldabaoth ou Jehová, o Arconte das trevas, se rebelou contra o Verdadeiro Deus, a essência eterna e original do Bem, porém seu reinado de terror é tolerado e permitido apenas por um tempo, até que todos os Espíritos cativos sejam libertados. Assim, o mundo espiritual é concebido como sendo radicalmente distinto do mundo material, co-extensivo ao Pai verdadeiro, e verdadeiro lar dos descendentes de Seth (a Humanidade com potencial espiritual). De todos os sistemas dualistas, é o que fornece um senso mais agudo de alienação dentro do mundo, e impõe o imperativo da fuga, do escape das limitações penosas da Matéria.
3)      MONISMO QUALIFICADO – Quando é discutível se a segunda força/princípio/entidade é divina, ou semidivina. Tomando como exemplo a gnose Valentiniana, assim como certos trechos isolados do Evangelho dos Egípcios, a malevolência do Rex Mundi é atenuada e reduzida a um estado de ignorância, ou imperfeição, então não haveria mal na Matéria, apenas incompletude, uma imperfeição ou erro de percepção que seria simbolizado mitopoeticamente pelo ato da criação material (ou da própria criação de Yaldabaoth pelo Éon Sophia, ato do qual ela se envergonhou por ter sido consumado “na ignorância”). O Platonismo clássico pressupõe que a matéria não é essencialmente maligna, mas pertence à sombra por conta de sua imperfeição em relação ao plano arquetípico original.
Enquanto a cosmogênese maniqueísta se encontra na primeira categoria, radical – o que leva Mani a dizer, por exemplo, “o Verdadeiro Deus não tem relação com o mundo material ou cosmos”, e “foi o Príncipe das Trevas quem falou com Moisés, os Judeus e seus sacerdotes. Portanto, os cristãos, judeus e pagãos se enredaram no mesmo erro ao venerar este deus. Pois ele os desvirtua nas perversidades para as quais os guia.” (do texto inquisitório Acta Archelai), Mani cai na contradição ao afirmar que as forças da Luz moldaram aspectos da criação material para que a Luz pudesse ser extraída de sua prisão e devolvida ao Pleroma, aos Céus do Deus verdadeiro. Pois como se prova no Livro dos Dois Princípios, a onipotência de Deus é para o bem – ele é impotente para fazer e gerar o Mal, portanto os Espíritos de Luz não podem ter qualquer inferência no mundo da Matéria, exceto lutar para destruir a prisão material.
Este engano ou confusão de Mani, comum nas escolas Sírio-Egípcias do Cristianismo Gnóstico (influenciadas pelo Platonismo), não diminui seus méritos e aspectos positivos. Suas viagens para a Ásia Central o levaram a conhecer o greco-budismo, que adotou em seus ensinamentos – especialmente na doutrina da transmigração das almas, e a purificação gradual dos venenos agregados que prendem ao Karma, à essência do mundo ou, em suas próprias palavras, a Extração da Luz (para fora do amálgama luz/trevas).
 Da sua mistura particular de greco-budismo, zoroastrismo, e gnosis judaico-cristã, Mani separou a identidade de Jesus (que não diferenciava do Cristo, mas assumia ser apenas uma de suas manifestações, sendo outras manifestações de Cristo Buda, Krishna, Zoroastro, etc, etc) em três aspectos hipostáticos: (1) Jesus o Luminoso (entidade incorpórea, espiritual e pura), (2) Jesus o Messias (aspecto histórico, material), e (3) Jesus Patibilis: assim como hoje reconhecemos no Catarismo, compondo uma de suas Quinze Pérolas ou princípios sagrados, o conceito de Paktibye (russo para Patibilis, Sofrimento), no Maniqueísmo a paixão de Cristo não tem valor salvífico para a humanidade, mas foi realizada como exemplo de redenção e elevação individuais a partir do Gólgota que cada um precisa encarar – a mystica cruxificio está presente em cada erva, árvore, pedra, animal ou partícula do mundo, num sofrimento constante e universal que não pode ser esquecido (e que era o tema da maioria dos salmos e cânticos dos Maniqueus e Coptas).
O Maniqueísmo teve um espalhamento rápido no mundo, mas foi reprimido no Ocidente pela igreja organizada do Rex Mundi, antes do final da idade clássica; Santo Agostinho foi um hipóstata (em português claro, traidor) do Maniqueísmo. A diferença clara entre o pensamento gnóstico, de elevação catárstica do humano rumo ao divino, e o pensamento da Igreja do Demônio, pecadocêntrica, julgadora e humilhadora, se revela nessa confissão de Santo Agostinho:
Eu ainda pensava que não éramos nós a pecar, mas alguma outra natureza que peca em nós. Estimulava meu orgulho pensar que eu não tinha culpa e, quando eu errava, que eu não precisava confessar... eu preferi me dar esta desculpa e culpar essa coisa desconhecida que estava em mim e não era parte de mim. A verdade, claro, é que tudo era eu mesmo, e minha própria impiedade me dividiu contra mim mesmo. Meu pecado era ainda mais incurável porque eu não pensava em mim mesmo como um pecador” (Confessiones, Liber V, s.10).
No oriente, o espalhamento foi maior, por conta de ser uma religião que não pregava contra outras religiões ou doutrinas, mas supunha ser seu aperfeiçoamento, seu complemento. Desta forma, para o oeste da Pérsia chegou à China Tang, e ao reino Uyghur, que englobava muito da Ásia Central e Sibéria, onde foi religião oficial por influência dos pensadores citas sogdianos que o imperador (Khagan) Bögü Tengri convidou à sua corte no ano 763; intrigas palacianas mataram o imperador e muitos dos intelectuais citas que levaram o Maniqueísmo aos confins siberianos do império Uyghur, mas o culto se manteve oficialmente até a chegada dos turcos vindos do nordeste, quando se mesclou ao Tengerismo de essência consonante e princípios mais simples e populares.
Outras doutrinas, gnósticas ou não, negavam a unidade de Jesus e Cristo de diversas formas, pois o dualismo torna inadmissível a identificação da essência divina com a carne – e o Verbo feito Carne, Verbum Caro Factum Est, precisa ser esclarecido pois, tomado ipsis litteris, é uma fórmula satânica, que diviniza a matéria criada pelo Rex Mundi. Uma das fórmulas pensadas foi o Adocionismo, doutrina segundo a qual Jesus não nasceu com essência divina, mas a adotou no seu Batismo, quando nasceu o Cristo dentro do Homem, e não Cristo feito Homem.

OS PAULICIANOS, GUERREIROS DO VERDADEIRO KRISTOS

A principal doutrina que adotou essa sutileza teológica foram os Paulicianos. Tal doutrina foi fundada por um armênio, Constantinus Sylvanus, que pretendia levar a cabo uma reforma purificadora da fé cristã, de maneira semelhante a Marcião de Sinope que queria exterminar o “Yahvismo” dentro do Cristianismo. No caso de Sylvanus, ele pretendia restaurar o Cristianismo como pregado por Paulo: dualista, iconoclasta e rejeitando a maioria dos sacramentos, como a eucaristia e o batismo, pois é senso comum entre os dualistas gnósticos que o Espírito é puro e sem pecado, mas está preso por engano e trapaça neste mundo. Seus locais de reunião não eram templos, mas os chamavam ‘locais de oração’. Podiam praticar formas espontâneas de ascetismo, mas não faziam distinções em relação a comida, e se casavam normalmente.

É importante ressaltar que, nas doutrinas gnósticas em geral, as austeridades não são doutrinárias ou obrigatórias, mas bem-vindas para os que se sentem inclinados a segui-las; como um certo Ptolomeu, discípulo do romano Valentinino, escreveu em sua Epístola a Flora, “As restrições físicas externas são observadas mesmo entre nossos seguidores, pois podem ser de algum benefício para a alma se engajadas com razão consciente (logos),  e quando realizadas sem limitar aos outros, nem por hábito, nem por causa do dia, como se um dia pudesse ser apontado especificamente para esse propósito”.
Os armênios de hoje se gabam de ser o primeiro reino do mundo a se converter oficialmente ao Cristianismo. Isto ocorreu em 301, antes de Constantino converter à força o Império Romano. Porém, características peculiares da cultura e religião armênias vão ajudar a compreender o surgimento posterior do Paulicianismo.

Um povo antiquíssimo (reconhecido como tal desde 2500 a.e.c), um ramo isolado dos citas como os dácios na atual Romênia (que se tornaram os keltoi ou os celtas de La Tène), tinham uma religião politeísta que assumia, no entanto, um Deus supremo de nome Aramazd (nome influenciado pelo Mazda dos zoroastristas persas), o que facilitou a assiimilação do monoteísmo posterior, mas a principal divindade, dona dos maiores templos e estátuas, era Nane. Nane, nome talvez relacionado com a Inanna ou Ishtar dos antigos kassitas e assírios, era a mesma Tabiti dos seus primos citas – uma Deusa do fogo purificador, e da Guerra; suas estátuas eram fortemente similares às estátuas de Pallas Athena na grécia clássica, uma deusa jovem e armada com lança e escudo. Nane era associada a Anahit, sua entidade-gêmea, deusa das águas e da medicina que o historiador Berossus identificou com Aphrodite Kythereia, a Deusa dos cercos e citadelas.
No ano 301 o rei Tiridates III oficializou o cristianismo, incluindo o tradicional banho de sangue e perseguição dos locais pagãos de culto. A Igreja  da Armênia, a mais antiga do mundo, sempre foi de posicionamento ortodoxo, e participou e subscreveu a maioria dos Concílios. Mesmo depois da absorção do reino pelos sassânidas em 428, e pelos árabes em 636, revoltas populares garantiram o status de principado autônomo com liberdade religiosa; o príncipe da Armênia, então, passou a depender alternativamente do Califa de Baghdad e do Imperador de Bizâncio.
Ora, o trono bizantino, cabeça da Igreja Ortodoxa – um assento do Trono de Satanás, que perseguia os gnósticos com violência, assassinou o príncipe Sviatoslav de Kiev (que havia destruído o reino de Khazar) e instigou conversões forçadas seguidas de assassínios rituais (como a Igreja Romana fez no ocidente, um pouco mais tarde, a partir de Carlos Magno) – passou a perseguir os Paulicianos quase que imediatamente. Constantinus Sylvanus foi morto por apedrejamento em 687, 27 anos após a fundação de sua congregação, que tomou um grande número de pessoas.

O intuito de reforma de Sylvanus falou ao coração de muitos armênios – sempre indóceis e rebeldes em relação a Bizâncio, e ainda com a memória ancestral de uma Deusa belicosa do fogo e da Sabedoria, prezavam pelo conhecimento detalhado da escritura, e em 500 o povo armênio foi  o primeiro povo a traduzir o Novo Testamento à sua língua nativa, e de fato eles inventaram um alfabeto apenas para poder realizar essa tarefa. A Igreja institucionalizada do Rex Mundi jamais aprovou que se buscasse a Sabedoria, o Conhecimento, ao invés da simples fé e obediência. O próximo povo a ter a Bíblia em sua língua nativa seria o povo alemão, com Gutenberg, mil anos depois da tradução armênia.
Mais ódio ainda causava a rejeição e desprezo dos Paulicianos pelo Tanakh, o Velho Testamento, e 200 anos de perseguições, expurgos e genocídios se seguiram, que somente cessavam quando massas de Paulicianos buscavam refúgio nas poucas partes da Armênia controladas pelo Califado, aonde os bizantinos não tinham poder. Em 844, o líder Pauliciano Kerbeas liderou a construção de duas cidades ‘independentes’ (uma versão medieval de Canudos), Amara e Tephrike. Durante o reinado de quatro imperadores bizantinos, uma cruzada foi lançada e que levou à quase extinção de todos os Paulicianos e gnósticos da região: começando com Miguel III, se estendendo pelos reinados de Chrysocheres, Basílio I e Constantino V. Perto do ano 900, os poucos Paulicianos restantes fugiram para a Síria e a Armênia muçulmana.

Em 969, um imperador bizantino de família armênia chamado João Tzimiskes, um general terreno e pragmático, mais inclinado à conquista do que à religião, subiu ao trono e numa breve campanha conquistou a Bulgária e a Trácia das mãos de Svyatoslav I (cuja história já vimos), expandindo Bizâncio para o norte. No ano seguinte, fez um acordo com os Paulicianos e os chamou para viver sob sua proteção na cidade de Philippopolis, Bulgária, onde teriam liberdade religiosa em troca de defender aquela região fronteiriça contra as incursões dos Rus e dos mercadores/saqueadores escandinavos. Afinal, um traço em comum entre os Paulicianos e Bogomilos é que todos eram renomados na luta, e prezados como guerreiros, pois apesar da sua visão malteísta de mundo, eram menos vulneráveis ao temor da morte física do que os adoradores do Deus de ‘Infinito Amor’ que criam ser o Arconte demiúrgico.
Philippopolis, posteriormente Plovdiv, se tornou um centro cultural e religioso importantíssimo por um breve tempo, onde a fusão do Paulicianismo e de um movimento reformista local deu nascimento ao Bogomilismo. Logo missionários ortodoxos foram enviados en masse para converter ou subornar partes da população, às quais foi oferecida uma cidade rival e vizinha chamada Alexiopolis (em honra ao principal conversor, Alexios Kommenos), onde estariam a salvo de uma nova perseguição. Boa parte da população, amedrontada pela ameaça, se converteu à ortodoxia e se mudou para Alexiopolis, minando definitivamente a força do principal centro de difusão do Bogomilismo, cuja breve vida não alcançou um século. Os 100 anos de atividade missionária foram um período breve, porém frutífero, pois de Plovdiv se enviaram pregadores e missionários para todos os cantos da Europa oriental e ocidental, da Dinamarca à Lombardia italiana, da Croácia à Espanha e, principalmente, para a Provença e as regiões pirenaicas de França e Espanha.

O BOGOMILISMO - AMIGOS DE DEUS, INIMIGOS DAS INSTITUIÇÕES
Os Bogomilos eram docetistas, ou seja, pregavam que Cristo não tinha natureza corpórea – apenas a semelhança com um corpo humano, que jamais pode ser consubstancial ao Espírito; a eucaristia, os paramentos, relíquias e templos, todos itens materiais, eram terminantemente rejeitados, e os rituais eram feitos em locais abertos. De igual forma, eram radicalmente anti-hierarquia, e desafiaram a separação entre clérigos e laicos. Além do Paráclito, a manifestação do Espírito Santo, os Bogomilos invocavam com muita frequência um Arcanjo chamado Uriel.


Uriel é um dos nomes que, segundo a tradição, os judeus, criadores da angelologia e da demonologia, trouxeram de volta do seu exílio da Babilônia, os tendo aprendido com os sacerdotes babilônicos. Uriel significa a “Luz de Deus”, e portanto uma referência direta ao Portador da Luz, Lucis Ferens, Lucifer ou Eosphoros, que na Gnosis não é o Demônio, senão o próprio Éon Autogenes, o Kristos Luz: em sua igreja, Yaldabaoth tenta fazer identificar Lucifer com Satanás, o anjo caído, mas até os escritos de São Jerônimo no século XI, tal identificação não existia. Uriel é um anjo do arrependimento (e portanto do processo cátaro de Catharsis, e a purificação posterior), geralmente representado portando uma espada de fogo e protegendo os filhos de Deus de maneira feroz, sem piedade pelos inimigos.Uriel também é um instrutor dos homens, interventor e, no Livro de Enoch, combate e julga os Arcanjos corrompidos que tomaram as mulheres dos homens, gerando crias degeneradas conhecidas como Nephilim. No livro de Enoch, Uriel os derrota em batalha e os julga – daí sua evocação pelos Bogomilos e gnósticos em geral, pois representa a crença de que as potências do Deus Verdadeiro virão intervir e julgar a loucura sádica de Yaldabaoth.
Os Bogomilos ensinavam que Deus tinha dois filhos, o mais velho Satanail e o mais jovem, Miguel. O filho mais velho se rebelou e se tornou um espírito do Mal. Depois de cair até os céus e abismos inferiores, em vão ele tentou criar a vida, e teve de apelar ao Pai para o Espírito. Após criar Adão, ele teve autorização de viver na terra conquanto vendesse a si mesmo e a toda sua posteridade para Satanail, o dono da Terra. Miguel veio na forma de um homem, Cristo, que derrotou Satanail e o privou do sufixo il-‘deus’, se tornando Satanas. Mais tarde, essa vinda de Miguel foi identificada com Jesus, e a crucifixão, uma maquinação de Satanás. Se apropriando da doutrina do seu vencedor, Satanas criou toda a comunidade Ortodoxa com suas cruzes, paramentos, cerimômias, sacramentos e jejuns, seus clérigos e freiras.

A essência do Bogomilismo era a dualidade, e portanto o desprezo por tudo o que é mundano e institucional. Tudo o que fosse político, governamental, social ou institucional era desprezado, e os crentes, via de regra, se recusavam a trabalhar no sistema feudal de servidão, não pagavam impostos nem lutavam em guerras que não fossem de defesa. O fato de ignorarem o feudalismo era encarado como subversão pela Igreja, uma tentativa de destrui-la. O bogomilo russo Karp Strigolnik, que no século XIV pregou a doutrina em Novgorod, explicou que São Paulo ensinara que os homens simples deveriam instruir uns aos outros, e os instrutores deveriam ser eleitos dentre os homens comuns, sem um clero especial. A congregação eram os ‘eleitos’, e cada um podia por si se tornar Cristo, “Chuist”.
Tudo isto criou uma forte base de apoio popular na Europa, mas também uma forte base de perseguição por parte das Igrejas institucionalizadas; depois de um amplo espalhamento inicial, os bogomilos foram perseguidos até a extinção na Rússia; os remanescentes de Phillipopolis fugiram para a Sérvia, onde foram perseguidos e expulsos pelo Župan da Sérvia, Stefan Nemaja. Destes, a maior parte encontrou refúgio na Bósnia, onde foram conhecidos como Patarenes ou Patarenii.
Em 1199 Stefan anexou a Bósnia e estabeleceu sob seu domínio o governo do Ban (chefe) Kulin, que no mesmo ano se converteu oficialmente ao Bogomilismo, seguido por vários nobres bósnios incluindo o Príncipe de Herzegovina e o Bispo romano da Bósnia. A religião Bogomila (do búlgaro Bog, Deus, e Mil, Amigo – amigos de Deus) se tornou popular na Bósnia, e o reino de cinco anos de Kulin (1199-1204) foi de paz e prosperidade: altares e cruzes foram removidos, a distinção e privilégios do clero, extintos. Um imposto foi criado para os crentes, para apoiar os esforços dos evangelistas itinerantes.



Em 1203, o representante de Yaldabaoth na Terra, o papa romano Inocêncio III (que lutou para exterminar também os Cátaros) forçou Kulin a assinar um acordo onde ele reatava com Roma, mas o acordo ficou no papel; já em 1222, Roma ordenou o império Húngaro a atacar a Bósnia, que resistiu até 1291, quando a inquisição católica foi imposta. Entretanto, a população jamais renunciou ao Bogomilismo totalmente, se recolhendo num ódio rançoso e surdo contra os novos mestres católicos e ortodoxos: no século XV, quando os turcos otomanos tomaram conta da região, muitos bogomilos e paulicianos se converteram ao islamismo, alguns fazendo referências iconográficas ainda à antiga Deusa armênia Nane e a Uriel, o protetor dos Bogomilos, como última forma de rebeldia contra a Igreja do Demônio, sediada em Bizâncio e Roma, e com sede de luta contra ambos. Essa conversão em massa, voluntária, selou o destino dos bálcãs até os dias de hoje – quando muitos Sérvios acusam os muçulmanos bósnios de traírem a tradição européia, mas se esquecendo de que tal perversão ocorreu no desespero, como uma forma de resistência à Igreja do Demônio, a Roma que eles próprios defenderam, traindo a Humanidade espiritual.
Da Bósnia, a influência dos Bogomilos passou para o Piemonte italiano. O ritual em eslavônico, compilado pelo bósnio Radoslav, é basicamente idêntico ao rito Cátaro publicado por Cunitz (1853), e a partir de então, passamos ao Catarismo propriamente dito.

RESUMO E POSFÁCIO

Em resumo, os dois últimos artigos passam brevemente, muito brevemente, por um continuum, um elo que garantiu a continuidade do pensamento dualista, da revelação da realidade dos Arcontes e da nossa alienação da Luz verdadeira de Kristos, enviado do Deus Incognoscível. Naturalmente, cada um dos tópicos, nomes, lugares e idéias apresentados por mim permitem, in sich, um grande aprofundamento, para os que tiverem vontade de tal.
Apenas vale ressaltar que, quando eu menciono um continuum, não é necessariamente uma continuidade cultural, como um grande ‘telefone sem fio’ ao longo da História. Isso seria cair no erro grosseiro dos historiadores e cientistas sociais modernos, que somente conseguem ver elos naquilo que evidencia uma continuidade material no tempo transcorrido do mundo (Kronos, o tempo contínuo que contamos). Os gregos possuíam um segundo tipo de ‘tempo’, chamado Kairos, “o momento justo”: não o tempo contínuo, segundo após segundo, mas um tempo transcedental, onde ocorrem sincronias inexplicáveis entre fenômenos e entes distantes no tempo-espaço, mas sincronizados como se girassem em torno de um mesmo eixo, que chamam de Charis (a Graça Divina). Podemos identificar a continuidade da doutrina do Cálice, de Targitaus até os primeiros Cátaros de Albi, como sendo ora fruto de uma continuidade doutrinária, nesse caso dos Paulicianos e Bogomilos, e ora como fruto de uma continuidade ou transmissão pelos Khairé, resultado da memória espiritual de vários povos valorosos, e da ação de guerra das forças do Deus Verdadeiro, do Canto que Epinoia faz vibrar pelo Éter para o despertar de muitos Espíritos agrilhoados.

O principal aspecto para o qual pretendo chamar a atenção é o refinamento na interpretação do dualismo gnóstico; em Marcião, temos o desejo de reforma da Igreja; com Sylvanus e seus paulicianos, a religião é que tinha de ser purificada; com os Bogomilos, a purificação significava o desprendimento e a rebeldia contra toda forma de instituição humana, o que já é um grande salto intimista e microcósmico; com os Càtaros, o foco central será a purificação do Ego de todos os venenos mundanos, desfazendo por engenharia reversa a modelagem adaptativa a que os Arcontes submeteram os Espíritos aprisionados no mundo da Matéria.


Os Cátaros medievais não conheciam muitos dos textos ‘apócrifos’, como os de Nag Hammadi, para embasar sua doutrina, e mesmo assim a expuseram, como diria César, ab imo pectoram – das profundezas do peito. Hoje, o estudo e formulação da doutrina Cátara, e a compilação de um Cânon mais completo, são possíveis devido à gigantesca quantidade de informação que os Perfecti não tinham acesso – e que, no entanto, eles defenderam com a própria vida, numa sincronia com todos os movimentos gnósticos anteriores que só pode ser atribuida aos Khairé, o plano de deslocamento e ação das forças supraterrenas da Luz (enquanto as forças das trevas preferem agir em Kronos, na História).
Nos próximos artigos, antes de passar para a história de facto do Catarismo como movimento, creio ser a hora conveniente para expor o que ele é, o que foi e como se apresenta hoje, tudo isto em alto grau de detalhe. Se eu priorizei a pré-história do Catarismo, foi apenas para que se tenha consciência da longa e rica história que o antecedeu, e as bases dos Mysteria que ele representa.
Encerro este excerto historiográfico com um hino muito apreciado entre os gnósticos maniqueus e ofitas, do Egito e Síria antigos, o Hino da Pérola; o hino, na sua forma musicada, sobreviveu aos séculos, e é apreciado mesmo nas comunidades ortodoxas e cópticas de hoje. Ao mesmo tempo em que serve de posfácio a esse estudo, é tambem um prefácio para o próximo artigo, onde as Quinze Pérolas ou conceitos sagrados do Catarismo serão apresentadas.
Quando eu era apenas uma criança
Morando no reino e lar de meu pai
Com as riquezas e luxos dos meus tutores
A vida era doce e fácil.
Da nossa casa no Leste,
Findas todas as preparações,
Meus parentes me enviaram.
[...]
Então fizeram comigo um pacto
Inscrito em meu coração: que eu não o esqueça!
“Desça à terra do Egito
E traga aquela Pérola
Que está no centro do mar
Cercada pela serpente sibilante,
E então ponha seus paramentos cintilantes,
E a sua toga sobre eles.
E com seu irmão, nosso segundo em comando,
Você será herdeiro em nosso reino.
[...]
Fui direto à serpente,
E próximo dela me ocultei
Até que a serpente adormecesse
E eu pudesse me apossar da pérola.
Então eu fiquei só e solitário,
Para todos um estranho
[...]
E de alguma forma,
Perceberam que eu era um forasteiro.
Então armaram um engano contra mim,
Me fizeram comer de sua comida.
Eu esqueci que era filho de reis,
E servi o rei daquele país.
Eu esqueci a pérola,
Para a qual me enviaram meus pais.
Por causa do peso de suas exortações,
Caí num sono profundo.
Mas por tudo isso se enlutaram meus pais
[...]
E escreveram uma carta para mim,
E cada nobre assinou nela seu nome.
“De seu pai, Rei dos Reis,
E de sua mãe, governadora do leste,
E de seu irmão, o segundo em comando,
Para nosso filho no Egito, paz.
Desperta e levanta do teu sono,
Escute nossas palavras.
Lembra que és filho de reis
Considera sua escravidão atual.
Lembre-se da pérola,
Pela qual foste enviado ao Egito.
Pense em sua futura glória,
Lembre sua toga esplêndida,
Que irás vestir quando seu nome
For chamado do livro dos combatentes,
E com seu irmão, o vice-rei,
Com ele, serás em nosso reino”.
[...]
Eu lembrei que era um filho de reis,
E meu ser livre ansiou por seu estado natural.
Eu lembrei da Pérola
Pela qual fui enviado ao Egito.
Então eu comecei a encantar
A formidável, sibilante serpente,
E fiz com que adormecese,
Pois cantei para ela o nome de meu pai,
E o nome de nosso segundo em comando,
E de minha mãe, Rainha do Leste.
Então agarrei a pérola,
E retornei à casa de meu pai.
E a roupa imunda que me deram,
Eu tirei e deixei naquele país.
[...]
E meus paramentos gloriosos que eu deixei,
E minha toga que os embrulhava,
Nos altos da Hircânia,
Meus pais os enviaram ali,
Nas mãos de seus arautos,
Que por serem fiéis foram confiados a mim.
[...]
Eu me vesti e comecei a ascender,
Para o palácio do culto e da paz.
Eu me curvei e o reverenciei,
O brilho de meu pai que me enviara.
Porque cumpri seus comandos,
Ele cumpriu sua promessa.
E no palácio de seus escribas,
Debati com seus professores,
Porque ele se alegrou comigo e me acolheu,
E eu fui com ele em seu reino.


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